Onde estava o Mestre Shin Shikuma

O termo Mestre está banalizado. Mas se tem um cara que se encaixa perfeitamente nesse título é o Mestre Shin Shikuma. Fotógrafo de skate desde os anos 80. Imortalizou a cena do skate no Brasil durante anos e registrou várias Eras.

Em 1987 Shin entrou para o staff da revista Yeah! como editor de fotografia. Ele já era fotógrafo profissional e skatista desde a infância, mas registrar skate só depois do convite da Yeah!

Ele está afastado das sessões e tem se dedicado a ilustrações com nankim. Sua primeira exposição, a “Sombras & Luz”, abre sexta-feira, dia 22, na Roosevelt Skateshop, e também será lançamento do seu livro, uma graphic novel chamada “00:00”.

Nessa semana acompanhei a montagem da exposição e fiquei muito impressionado com a qualidade e perfeição dos traços do Shin. Aproveitei o reencontro com o Mestre para fazer uma pequena entrevista.

Mestre Shin Shikuma. (Sidney Arakaki)

Pra gente, que acompanha seu trabalho desde a década de 80 vendo revistas de skate, suas fotos, a gente ficou alguns anos aí sentindo sua falta nas revistas de skate do Brasil. O que aconteceu?

Eu passei por um problema pessoal. Coisas externas aconteceram na minha vida, que lá pra frente eu descobri que tinha uma coisa muita interna minha de insatisfação também. Aconteceram coisas na minha vida, eu posso citar um exemplo que desencadeou tudo, que foi o acidente do meu filho. Ele caiu com o skate e bateu a cabeça, ficou em coma, quase morreu. Ali desencadeou todo um processo de questionamento de tudo o que eu estava fazendo e do que eu deveria fazer dali pra frente. Um momento de crise existencial. E como rolou um momento financeiro muito grave, e como tudo desencadeou num momento só, eu não tinha alternativa. Ou eu sucumbia a isso, não conseguiria resolver e sucumbir a isso, ou tentava uma solução.
Foi o que eu fiz, decidi me afastar de tudo. Fui pro litoral, eu tenho uma casa lá, e decidi ficar um tempo lá pra ver as coisas com distância pra entender o que estava acontecendo comigo. E nesse processo de afastamento, de reclusão auto imposta, já se passaram sete anos.

E nesse processo todo, o que me salvou foi a arte. Foi onde eu descobri que a vontade de desenhar persistia muito forte em mim. É uma coisa que sempre existiu, mas como a fotografia tomava um tempo muito grande na minha vida e me sustentava, me dava uma dinâmica de uma vida que eu nem parava pra pensar nisso, o desenho ficou ali meio oculto. Mas sempre foi antecedente a fotografia na minha vida. Eu comecei a desenhar, meu caminho sempre foi pelo lado das artes plásticas. Só que a fotografia surgiu no meio dessa trajetória e me proporcionou mil descobertas. Viajei o mundo, conheci gente, me desenvolvi, saí da minha timidez, que eu sou uma pessoa essencialmente muito introspectiva. E descobri uma forma de me comunicar com as pessoas e o mundo. E foram 30, 40 anos de fotografia. E quando rolou essa crise, como eu tinha muito tempo pra tudo na vida no litoral, o desenho começou a surgir gradativamente na minha vida. Eu fui desenhando traço a traço. E aquilo foi me proporcionando tanto prazer, tanto estímulo, que foi minha salvação.

E o que eu estou apresentando aqui hoje, é o resultado disso. O resultado desse mergulho que eu tive em mim mesmo e o resultado disso que foi o desenho. Eles foram surgindo um atrás do outro. Tem mil referências aí, de tudo o que eu amo na minha vida, que é rua, cinema, questões existenciais, pensamentos que eu tenho em relação a vida. Tá tudo aqui. Em preto e branco, um estilo que eu sempre foi muito clara pra mim, desde a época que eu fazia xilogravura nos anos 80.

Eu tô retomando isso num novo formato. E eu decidi agora exercitar um lado que eu não praticava antes. De mostrar, compartilhar com as pessoas o que eu faço. Sem recurso nenhum, através de apoio de amigos. O Reco (Robson da DC Shoes Brasil), através do apoio de algumas pessoas que me ajudaram a divulgar, me orientar, através do Edilson (Kato), que fez toda parte gráfica de montagem. O que eu estou lançando mesmo é um ‘graphic novel’, uma novela gráfica, um formato anti convencional, que não tem diálogo nenhum. Onde as imagens falam por si. As imagens que eu fui montando como se fosse um quebra-cabeça, desenhos que eu já tinha feito com desenhos que eu fui fazendo, fui juntando e aquilo acabou montando uma história criando uma narrativa. Então eu consegui imprimir isso, fiz uma tiragem de cem edições limitadas e vou lançar nessa sexta-feira.

Shin (Sidney Arakaki)

Você sente falta das sessões de skate?

Olha, skate jamais vai sair da minha boca alguma coisa negativa. Porque skate foi parte da minha vida e eu considero uma entidade. É uma coisa que proporcionou, pra mim, uma caminhada fantástica, de conhecimento, de prática. O skate é uma coisa que eu andava, nunca fui um bom skatista, mas eu sempre fui praticante. É uma coisa que faz parte da minha vida, meu lifestyle. Eu sofri uma queda de skate, que na verdade foi a gota d`água pra que tudo isso surgisse. Quando eu estava andando de skate lá em Bertioga, quebrei o femur. Como eu fiquei imobilizado na cama e teria que ficar uns seis meses, eu não queria ficar aqueles seis meses na cama sem fazer nada. Então, foi ali que eu falei, eu vou criar alguma coisa dentro dessa situação limite negativa que aconteceu comigo. Dentro de tantas coisas ruins, culminou nisso.
Eu gosto tanto de história em quadrinhos, foi por onde eu comecei quando era criança desenhando. Desenhos que eu via na televisão, nos filmes. Eu reproduzia isso quadro a quadro, eu decidi fazer. Uma das minhas paixões da minha vida é história em quadrinhos e cinema. Então eu decidi fazer alguma coisa que eu sentisse que era uma coisa valesse a pena ser compartilhada pelas pessoas. Então eu me dediquei nesses seis meses que eu fiquei imobilizado, fui desenhando e concebendo essa história que eu estou apresentando.

Então no meio de toda essa fase você sofreu esse acidente. Eu não sabia.

Então eu decidi comigo mesmo, que de tudo que de negativo que acontecesse na minha vida, ou o que aconteceu, eu entenderia como uma chance de transformação. Eu não queria mais enxergar como se fosse um fato negativo. E realmente, tudo o que acontece de ruim na sua vida, é questão de interpretação. É uma questão de ponto de vista. É uma escolha você transformar aquilo num dramalhão mexicano, numa tragédia ou transformar aquilo em algo positivo pra sua vida. Porque se acontece algo de positivo ou negativo, você foi o causador daquilo, de alguma forma. Quem planta colhe. Eu fui responsável por muitas coisas ruins que aconteceram. Eu vivi uma vida meio recalcada, um pouco no egocentrismo. Chegou um ponto onde eu era o Shin da fotografia, era o cara. Aquilo me jogou numa zona de conforto que não foi bom pra mim. Eu não tinha mais desafios, perdi um pouco da minha humildade, minhas procuras, meus desafios. Então, se eu não conseguir entender isso quando as coisas estavam bem, a vida teve que me colocar numa situação ruim para que eu reencontrasse um caminho verdadeiro de criação. E o resultado é esse. Então foi bom pra mim ter acontecido. Hoje eu só agradeço tudo o que aconteceu.

Você acha que isso fecha um ciclo da sua vida?

É, isso na verdade, reinicia um novo ciclo na minha vida. Voltando a falar de skate, a hora que surgir algo interessante… porque eu não tenho mais aquela paciência que eu tinha um tempo atrás de ficar 24 horas na rua. Eu sou mais de ficar dentro de um ambiente desenhando. Quando eu estava na rua, eu tava 24, 48 horas. Seja de dia, de noite, hora de chuva, qualquer situação. Eu já fiz isso. Mas se eu tiver que me envolver com algum projeto de fotografia com skate, eu tô aberto. Basta surgir a oportunidade certa. Eu nunca vou virar as costas pro skate, o skate sempre vai ser uma coisa importante na minha vida. Como é.

Tanto é, que eu estou fazendo essa exposição de arte, que na verdade aparentemente não tem nada a ver com skate, mas tem eu, que sou do skate. É alguém do skate que tá criando algo artístico. Então eu estou fazendo em uma loja de skate, no porão de uma loja de skate, pra mostrar que eu sou fiel as minhas origens. Eu amo skate ainda, eu vou continuar andando pra sempre.

Não é porque não tem uma manobra que não é skate. Skate é muito além.

O skate é uma coisa muito aberta. As pessoas limitam o skate quando querem. Se você quiser andar de skate e ser um pintor, um cineasta, ser um ator, nada impede. Você vai continuar andando de skate e fazendo o que você gosta. Eu tô provando isso, que o skate é arte também. E como ele é arte, ele te propicia outros caminhos artísticos também. Como eu já tenho esse caminho, essa visão, eu só tô dando o resgate a ele, e visibilidade. Então, isso aqui, pra quem não me conhecia como Shin desenhista, eu tô dando oportunidade, uma chance, que não vão ser muitas, claro que eu vou continuar fazendo mais coisas daqui pra frente, mas pra quem quer conhecer um outro aspecto da minha personalidade do meu eu, está aqui.

E você fez isso não foi por dinheiro.

Nada do que eu fiz envolveu dinheiro. Tá certo que numa época na minha vida no skate eu só pensava em grana. Foi aí o começo da minha derrocada (risos). Quando se começa a trair a sua essência, a sua origem, você começa a ir pro caminho errado. Isso aqui é puramente a vontade de me expressar, de dar vazão, um veículo de uma coisa que quer se manifestar. E isso me trouxe uma enorme satisfação. Reencontrei um caminho que me deu paz e tranquilidade. Quer coisa maior e melhor no mundo? Você encontrar uma coisa que você gosta de fazer, te trás alegria, paz e vontade de continuar fazendo isso. É igual andar de skate. Se você for andar de skate por causa de dinheiro, você tá fodido. A primeira manobra que te bater na canela… não quer mais isso na vida. É isso. Isso aqui é como andar de skate, como o prazer de andar de skate. Eu acordo, pego o pincel e desenho, da mesma forma que o cara pega o skate um dia, independente de marca, de mercado, e vai dar um rolê. Seja ele quem for. É isso o que eu quero provar aqui, independente da sua situação financeira.

Eu fiz isso no pior momento da minha vida, sem um tostão, sem emprego, vivendo de bico. Mas movido por uma vontade enorme. Porque essa força vinha de uma coisa que eu fazia com prazer. Isso não tem preço. A situação pode ser adversa, mas se você ficar reclamando que não tem condições, você não vai fazer nada. Você tem que ir lá e fazer. Essa é a questão. Se você vai fazer ou não, é aí que você vai provar o que você é. Se você tem essa coragem ou não. Isso não depende de grana, não. Eu fiz isso aqui catando madeira na rua, pintando, lixando, preparando. Papel não custa muito caro, nem pincel e nem nanquim. Eu fiz tudo com nanquim, não é tinta a óleo.

Nanquim é barato, pincel é barato e papel também. Madeira que você acha na rua é de graça. Então o que vale é a vontade de fazer.

Xilogravura produzida em 1983 e assinada como Nelson Shin. (Sidney Arakaki)

Você usar nanquim tem alguma ligação com a sua descendência oriental?

Eu acho que o nanquim… o preto e branco é uma coisa que eu não sei nem explicar de onde vem. Eu vejo muito mais cor no preto e branco do que as pessoas conseguem enxergar. Eu acho que, pra quem tem olhos pra ver, existe muito mais cor no preto e branco do que na própria cor. Mas o nanquim, por essa origem oriental, que vem lá de milênios, lá na China, deve ter alguma ligação comigo, com a minha ancestralidade. Porque foi uma coisa que, na hora que eu peguei o pincel e comecei a fazer as primeiras pinceladas, a coisa já foi surgindo.

Aí, o (Flávio) Samelo, logo percebeu que eu estava publicando isso no Instagram, os primeiros rabiscos ele já se encantou com aquilo, já me chamou pra uma matéria pra publicar umas imagens (na revista Vista). E aquilo foi fundamental, me estimulou a continuar. Eu falei, não fiz nada demais, só fiz umas pinceladas e as pessoas já sentiram o poder daquela mensagem. Então ali eu continuei e dali fui sofisticando, me aprimorando e foi no dia a dia. E eu percebi que eu não tinha perdido a mão. O mais interessante é isso. Passaram-se 30 anos ou mais que eu não tinha pego num lapis pra desenhar, e quando eu comecei a pegar, em questão de semanas minha mão já estava solta. É como se você tivesse parado de andar de skate a 30 anos atrás. No começo tudo bem, você começa a dar umas vaciladas, mas em uma semana você já está dando ollies, ollie flip e andando com segurança. Eu tinha uma base tão sólida de desenho, que esses 30 anos não foram nada. Foi como se fosse um hiatozinho, uma pausa. Foi perfeito. Acho que estava tudo coordenado e eu nem percebia isso.

A exposição fica na Roosevelt Skateshop até o fim de julho.

Roosevelt Skateshop
Rua João Guimarães Rosa, 149
Consolação, São Paulo, SP
Segunda a sexta das 10h até 20h
Sábado das 10h até 19h

O graphic novel “00:00” pode ser comprado pelo https://shinshikuma.tumblr.com

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